Com mais de 2.500 quilômetros já percorridos, o francês Johann Grondin realiza sua maior aventura, literalmente, ir a pé de um extremo ao outro do Brasil
“O que me move é a aventura, não posso viver sem ela”, afirma o francês Johann Grondin. E aos 46 anos, ele decidiu embarcar para a maior delas – pelo menos em extensão – e encarar a pé os cerca de 8 mil quilômetros entre Chuí, no extremo sul do Brasil, e Oiapoque, ponto mais ao norte do país. A jornada começou no dia 23 de fevereiro deste ano e no início de julho o montanhista já estava em Minas Gerais, com mais de 2.500 quilômetros percorridos. As rotas escolhidas por Johann priorizam os caminhos já abertos e sinalizados, muitos deles parte da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso – cujo maior percurso nacional é justamente a famosa “Oiapoque ao Chuí” –, mas o caminho, como já dizia o poeta, se faz ao andar. E é entre trilhas, montanhas, praias e até na beira de estradas que o francês tem criado seu ambicioso caminho.
Johann, ou Jow, como prefere ser chamado, vive no Brasil há seis anos e não é a primeira vez que explora o país a pé. “Já fui ao Pico da Bandeira, fiz a travessia Petrópolis x Teresópolis, fiz muitas travessias em Itatiaia [no Parque Nacional], atravessei o Espírito Santo a pé e, dois anos atrás, eu fiz a Trilha Transmantiqueira, de Extrema até Ibitipoca, em Minas Gerais. E lá eu encontrei um viajante que me falou sobre uma travessia que ele queria fazer no sul do país, de Cassino até Torres. E foi aí que eu comecei a ter a ideia de conectar essas travessias e fazer do Chuí ao Oiapoque”, lembra o montanhista em conversa com ((o))eco em seu português desenrolado e fortemente marcado pelo sotaque.
Uma vez amadurecida a ideia, era hora de partir, sem delongas. “Quando você sai para uma expedição de quase 8 mil quilômetros, você não pode querer se preparar demais. Tem muita coisa que você ajeita no caminho. Sair de casa é o mais difícil”, pontua o caminhante. “Não posso pensar que não estou forte o suficiente ou não estou preparado. Tudo vai sendo feito no caminho. O físico, você vai sofrer nas três primeiras semanas e depois você vai se aclimatar. Você encontra as soluções”, acrescenta.
E assim, num ímpeto corajoso, Johann saiu de casa e pegou um ônibus até o sul do Brasil. Foram quatro dias na estrada até Barra do Chuí. “Cheguei às 10 horas e comecei a caminhar”, conta. E não parou mais. Já são mais de quatro meses de caminhada.
O corredor litorâneo Oiapoque x Chuí é uma das eixos nacionais da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso, cuja construção, no longo prazo, será feita a partir da junção de trilhas regionais menores. Vários trechos percorridos por Jow são parte da Rede e das tradicionais pegadas amarelas e pretas de sinalização. Em outros casos, onde ainda não há caminho oficial, é preciso improvisar.
Durante o percurso, o francês tem recebido o apoio de representantes da Rede Brasileira. “Para mim é uma viagem cultural, quero encontrar pessoas, entender melhor o Brasil, os estados… Por isso prefiro ficar em pousadas, campings ou na casa de pessoas que são atores locais. E a Rede Trilhas tem me dado um apoio para encontrar essas pessoas, facilitando muito esse contato”, afirma Jow.
Acampamento improvisado sob proteção das dunas. Foto: Johann Grondin
A jornada começou no Chuí com a dura travessia da praia do Cassino – a mais longa do mundo – com cerca de 240 quilômetros de areia, vento e mar até o município gaúcho de Cassino e de lá seguiu pela costa até Torres e, então, para o interior, onde percorreu os cânions que marcam a divisa do território gaúcho com Santa Catarina.
Uma vez no lado catarinense, Johann seguiu até Orleans, de lá até o Parque Estadual Serra do Tabuleiro e chegou em Florianópolis, onde fez a volta na ilha antes de seguir pelo litoral até chegar ao Paraná.
O trecho paranaense foi, até agora, um dos mais marcantes para Johann. “Eu fui até Pontal do Sul e de lá fui para Ilha do Mel, Superagui [Parque Nacional], Ilha das Peças, foram várias ilhas selvagens, uma experiência incrível”, lembra.
Os dias de praias desertas, ilhas bem preservadas e trocas com comunidades caiçaras foram seguidos, entretanto, por um dos trechos mais complicados até agora, admite Jow. Na junção entre Peruíbe e Ubatuba, no estado de São Paulo. Neste ponto, ele não teve alternativa a não ser acompanhar a rodovia BR-101, atravessando a cidade de Santos, num contraste gritante com a tranquilidade dos dias anteriores.
“Cheguei em Ubatuba com muitas dúvidas na cabeça, eu me questionei inclusive se devia parar e voltar para o sul para ajudar as pessoas que me receberam tão bem lá. Eu me questionei bastante, mas me convenceram de que não era a minha missão, que eu devia continuar”, desabafa Jow.
Ao chegar em Ubatuba, a aventura tomou o rumo do interior e da Trilha Transmantiqueira. E ao alcançar o Parque Nacional de Itatiaia, em meados de junho, Johann deparou-se com a mobilização local para combater o incêndio que atingiu cerca de 300 hectares na parte alta do parque. O caminhante, então, virou brigadista voluntário para apoiar como podia os esforços. “Ajudei quase dois dias a fazer aceiro, saí de lá muito cansado e com um machucado no pé”, conta.
Exausto e com dor, Jow decidiu descansar em Visconde de Mauá por três dias antes de prosseguir.
“Quando você sai numa aventura assim, a estratégia sempre muda. Você não precisa planejar um ano de caminhada, planeja duas semanas. E depois você vai preparar as próximas. Eu tenho um roteiro, uma barraca de camping, sou autônomo com a comida, se precisar fazer um camping selvagem [sem estruturas de apoio], vou fazer. Vou acordar com o sol, vou dormir quando estiver cansado. Posso caminhar de noite e de madrugada para fugir do calor. Se precisar ficar num lugar para descansar, vou ficar. Eu escuto muito meu corpo e minha mente. Se meu corpo dói, vou parar e descansar. E minha mente também”, detalha o caminhante. “Então não tem muita preparação, minha única preparação é me adaptar a qualquer situação que encontrar e resolver os problemas que vão aparecer”, resume.
Nos últimos dias de junho, Jow aproveitou o Parque Estadual de Ibitipoca (MG) e de lá continuou seu caminho até o município de Ouro Branco onde, então, começará à Trilha Transespinhaço.
De acordo com os seus planos atuais, ele seguirá para Chapada Diamantina (BA), entrará no Piauí até o litoral, de onde vai atravessar para o Maranhão e depois para o Pará. “E na última etapa são cerca de 600 quilômetros de florestas para atravessar o Amapá até o Oiapoque”, detalha, ainda sem certeza de como vai cruzar a floresta amazônica até seu destino final no extremo norte do país.
Sobre incertezas, Jow explica que também não é possível cravar quando irá concluir sua aventura. “Eu penso que vou chegar em janeiro [de 2025], mas quem sabe? Posso ficar numa cidade mais tempo porque eu me apaixonei ou posso ter algum problema, posso me machucar”, pondera.
Na medida do possível, Johann compartilha sua jornada através da sua página no Instagram: Jow must go on (Jow precisa continuar, em tradução livre). Além disso, mantém um diário de viagem onde escreve suas impressões e histórias.
“Para mim o mais difícil e o mais bonito sempre vai ser o próximo trecho que eu fizer”, aponta.
Mapa ilustra o caminho já percorrido por Johann (azul) e seus próximos quilômetros (amarelo). Arte: Gabriela Güllich
Profissão: aventureiro
A vida de Johann tem sido uma constante busca por aventura, como ele próprio define. Aos 24 saiu do seu país natal para viver na pequena ilha São Bartolomeu, território pertencente à França localizado no Caribe. Após 15 anos na ilha, onde trabalhou com uma creperia, uma empresa de jardinagem e paisagismo e até mesmo mordomo de ricaços, decidiu abandonar a vida caribenha com sua esposa, brasileira, que queria voltar para ficar perto dos pais.
De volta ao Brasil, o casal criou um hotel e acampamento voltados para montanhistas e escaladores em Caeté, Minas Gerais. O negócio prosperou, mas o relacionamento partiu em direções opostas. “Ela queria ficar, eu queria me aventurar”, afirma. Seu trabalho hoje, conta, é “aventureiro”.
Definitivamente não faltam causos na sua jornada, como a vez em que tropeçou numa baleia morta enquanto caminhava de noite ou na vez que dormiu na rua em Aparecida, fora as interações com todos os tipos de pessoas que encontra pelo caminho. “Cada etapa tem uma aventura, uma história muito boa para contar”, explica. Sem contar a jornada consigo, ele acrescenta, “a trilha é também um caminho comigo mesmo. Passo 10 horas por dia pensando na vida, é uma aventura interna também”.
Com mais da metade do caminho até o Oiapoque pela frente, a aventura está longe de acabar. Por ora, mesmo quando não há caminho, não tema, caminhante, o caminho se faz ao andar.