Convencionou-se que a primeira trilha de longo curso do mundo é Appalachian Trail. Idealizada em 1921 pelo engenheiro florestal norte-americano Benton Mackeye, ela foi totalmente sinalizada entre 1923 e 1936 e logo tornou-se um sucesso entre os montanhistas estadunidenses, sendo percorrida hoje por mais de dois milhões de pessoas todos os anos.
Em 1938, o modelo chegou à Hungria, onde foi implementada a Blue Trail, concetando as regiões mais distantes do país. Logo após à II Guerra Mundial, as trilhas de longo curso aportaram em outros países da Europa, onde têm sempre mais de 50 km de extensão e são conhecidas como GRs (Grand Randonnée, na França, Groteroutepaden na Bélgica, Gran Recorrido na Espanha e Grande Rota em Portugal)[i].
Com o passar do tempo, o sucesso da Appalachian Trail inspirou a criação de outras trilhas de longo curso também nos Estados Unidos, onde rapidamente se multiplicaram, atingindo hoje a impressionante cifra de cerca de 100 mil quilômetros de caminhos pedestres totalmente sinalizados e manejados. Desde 1968, quando o Congresso Americano passou o National Trails Act, essas trilhas formam um bem coordenado Sistema Nacional de Trilhas.
Assim como nos Estados Unidos, os países europeus também criaram seus próprios sistemas nacionais de trilhas, usando as GRs como espinhas dorsais de enormes redes de caminhos que, somados, chegam a centenas de milhares de quilômetros (França 60 mil km, Espanha 60 mil km, Suíça 65 mil km, para citar alguns exemplos).
A partir do advento da União Europeia, as GRs nacionais começaram a se conectar, formando grandes trilhas europeias, as E-Paths, e tornaram possível viajar a pé desde pontos tão longínquos quanto o Nordkapp na Noruega até o Rochedo de Gibraltar, no sul da Península Ibérica. De fato, atualmente há centenas de trilhas internacionais na Europa, como a Peaks of Balkans conectando Kosovo, Albânia e Montenegro, a Via Alpina, a Via Dinárica e a trilha do Parque Binacional do Tatras que liga Eslováquia e Polônia, além de doze trilhas transeuropeias, cada uma com mais de cinco mil quilômetros[ii].
Mais recentemente, trilhas de longo curso têm sido implementadas também fora do eixo Europa/América do Norte, em países nos mais diversos cantos do globo: Japão, Coreia, China, Nepal, Butão, Jordânia, Israel, Líbano, Egito, África do Sul, Zimbabwe, Namíbia, Nova Zelândia e Austrália são apenas alguns desses lugares.
Nas Américas, para além dos EUA, o Canadá recém inaugurou a TransCanada Trail, maior trilha das Américas, com 24.134 km. Junto com outras trilhas de longo curso, como a International Appalachian Trail, a Bruce Trail, a Confederation Trail e a East Coast Trail, entre outras, ela forma uma rede canadense de trilhas.
Ao sul do Rio Grande já temos o Sendero del Pacífico e o Camino de Costa Rica e a Transpanama Trail na América Central e as GRs de Guadalupe e Martinica e a Waitukubuli Trail, na ilha de Dominica, no Caribe. Na América do Sul, os projetos da Huella Andina na Argentina, e o Sendero de Chile estão em implementação. Na Bolívia, a Red Boliviana de Senderos tem avançado consistentemente e, no Brasil, a Rede Brasileira de Trilhas, vai realizar em maio deste ano o Primeiro Congresso Brasileiro de Trilhas, com duas de suas trilhas nacionais, a Oiapoque x Barra do Chuí e os Caminho do Peabiru já tecendo as primeiras conversas para se conectarem com trilhas no Uruguai e no Paraguai; respectivamente o Caminho do Cabo Polônio e o Sendero Te Aviru. Outras iniciativas internacionais também começam a se desenhar na região das Missões Jesuíticas, entre Paraguai, Argentina e Brasil, e nos Pampas Gaúchos, tendo por pólo a conurbação Rivera-Santana do Livramento.
Mas não é só. Nos Andes, existe a rede conhecida como Qapac Ñan, composta por mais de 30 mil km de trilhas incas, que conectam Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Equador e Colômbia. Pouca gente sabe, mas só há duas trilhas de longo curso que são reconhecidas pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade: o Caminho de Santiago é uma. O Qapac Ñan é a outra. Seu traçado incorpora muita riqueza histórica e cultural. Machu Pichu, que todos conhecemos pelo menos de ouvir falar, é apenas um de muitos tesouros pré-colombianos visitados pelas estradas incas. Quem percorrer a totalidade do Qapac Ñan e seus ramais também vai conhecer outras maravilhas como Kuelap, Pisac, Chan Chan, Inga Pirca, Tiwanacu e Choquerirao para citar apenas alguns exemplos.
Na Amazônia, já existem trilhas que descem dos Andes equatorianos até encontrarem a floresta equatorial. Mais adentro na floresta, na reserva de Produção de Fauna Cuyabeno, empresas de ecoturismo operam trilhas aquáticas de 6 dias até a fronteira com o Peru. No Brasil, os Caminhos do Rio Negro, no Mosaico do Baixo Rio Negro, e a Rota Guarumã, próxima a Belém, ambas já em operação, permitem sonhar que um dia teremos uma trilha multi-modal entre Quito e a foz do rio Amazonas, revivendo em espírito a grande epopeia empreendida por Francisco de Orellana em 1542. Sonho? Com certeza? Impossível? Ed Stafford está aí para mostrar que não[iii].
Trilhas de longo curso, como vimos, são uma realidade cada vez mais palpável em diversos países do mundo. Se pensarmos um passo adiante, redes internacionais de trilhas já estão consolidadas na Europa e começam a aparecer em outros continentes, a exemplo da travessia do Monte Elgon, que conecta Quênia e Uganda[iv]. Algumas delas não só nasceram, como já atingiram a maturidade e vão muito bem, obrigado, a exemplo dos vários ramais do Caminho de Santiago.
À medida em que vão se consolidando, as trilhas internacionais, têm demonstrado ser ferramentas da boa diplomacia, aproximando povos, gerando fluxos integrados de turismo e de economia e criando conectores de paisagens que permitem vislumbrar uma gestão ecossistêmica de fragmentos do mesmo bioma localizados em mais de um lado de fronteiras entre países. Nesse modelo, será possível começarmos a trabalhar pela integração das diversas trilhas e redes de trilhas nos países e territórios das três Américas em um grande Sistema Pan-Americano de Trilhas?
O tema não é novo. Apareceu pela primeira vez, no III Congresso de Áreas Protegidas de Latino América e Caribe -III CAPLAC, em Lima em outubro de 2019. Na ocasião, desenhou-se o esboço do que seria uma REDE SUL-AMERICANA DE TRILHAS[v]. Agora, sob a liderança dos diretores do Núcleo Américas da World Trails Network, Pedro da Cunha e Menezes e Nat Scrimshaw e do presidente da Rede Brasileira de Trilhas, Hugo de Castro, o tema vai ser discutido novamente, no âmbito do I Congresso Brasileiro de Trilhas, que vai ter lugar em Goiânia entre 25 e 29 de maio.
Nesse contexto, podemos imaginar duas grandes trilhas longitudinais: A Trilha Atlântica e a Patagônia ao Alaska, ambas servindo como linhas mestras externas de uma vasta rede interior de outras grandes e pequenas trilhas.
Nenhuma das duas começa do zero, muito pelo contrário. A Trilha Atlântica já está quase toda completa, com manejo e sinalização na América do Norte. Seu nome provisório é Eastern Continental Trail[vi]. Seu extremo setentrional é o início da International Appalachian Trail na parte continental da província canadense Terra Nova/Labrador. A partir daí, com exceção de um trecho longo ainda por estradas, no estado norte-americano do Alabama, ela se conecta quase completamente por trilhas através da Appalachian Trail, seguida de Benton MacKaye Trail, Pinhoti Trail, Florida Trail e Florida Keys Overseas Heritage Trail.
Daí, imaginamos que, a exemplo da Trilha Transeuropeia E-4, que incorpora em seu traçado as ilhas de Creta e Chipre, a Trilha Atlântica passaria a saltar de ilha em ilha por onde o traçado já esteja implementado, a exemplo da Trilha Waitukubuli, em Dominica[vii] e as GRs dos territórios insulares franceses de Guadalupe e Martinica.
A chegada no continente americano, idealmente, se dará pela Venezuela, conectando-se às três Guianas ou descendo ao Brasil, com passagem pelos Tepuys e incorporando no traçado os incontornáveis Salto Angel e Monte Roraima, chegando, posteriormente, a Manaus. Dali, pelo Caminho de Orellana acima delineado, iria até Belém onde se juntaria à Trilha Oiapoque x Barra do Chuí, que já tem vários trechos implementados ao longo do litoral brasileiro.
No sul do Brasil, a Trilha Atlântica pode entrar no Uruguai por Chuy, onde empresas turísticas gaúchas já operam caminhadas na costa daquele país, passando pelo marco de Tordesilhas, no Parque Nacional Cabo Polônio e pelas fortalezas de São Miguel e Santa Teresa, construídas pelos portugueses há mais de 200 anos. Outra opção é fazer a conexão binacional pelos Pampas, onde na APA de Ibirapuitã, está sendo implementada pelo ICMBio com apoio da prefeitura local e de voluntários da região, a Travessia dos Pampas. Ali, na cidade geminada Rivera/Santana do Livramento, já se comenta com entusiasmo a possibilidade de estender a trilha para a Banda Oriental.
Na Argentina, a trilha seguiria o litoral levando o expedicionário, que poderá fazer a maior parte deste trecho sobre uma bicicleta, por locais de natureza esplêndida como a Península Valdez, até terminar em Ushuaia ou, melhor ainda, abrindo a boca em um belo sorriso no qual sobressai o brilho incomparável (da travessia) dos Dentes de Navarino.
Na vertente oeste americana, a grande trilha Alaska-Patagônia teria seu terminal norte na cidade de Nome, onde começa a Alaska Long Trail. De Anchorage ela se conectaria à Trilha Transcanada por rotas que atravessam o Parque Estadual e a Floresta Nacional de Chugach e o Parque Nacional Wrangell St-Elias, nos EUA, e o Parque Nacional Kuluane, no Canadá. Na fronteira sul do Canadá com os Estados Unidos ela se juntaria à Pacific Crest Trail e, por ela desceria até a fronteira com México. Outra opção, igualmente válida e não excludente, seria descer pela Continental Divide Trail (CDT). Ambas as hipóteses têm seus defensores. Enquanto Zelzin Aketzalli, uma tríplice coroada mexicana, está mapeando uma ligação entre a CDT e a Cidade do México[viii], aproveitando uma antiga estrada real da época em que a região era colônia da Espanha, mais à oeste, o inglês Graham Mackintosh já mapeou todo o traçado na Baja Califórnia[ix].
Daí até o Sendero del Pacífico e o Camino de Costa Rica, muito trabalho precisa ser feito para conectar o sul do México às fascinantes ruínas maias de Guatemala, El Salvador e Honduras, bem como às cidades coloniais de Antigua, Léon e Granada e às fascinantes paisagens de vulcões e lagos que decoram toda a região. Se não há, ainda, longas trilhas organizadas, existem, por outro lado, dois projetos de integração regional que podem abrigar as atividades de implementação de uma grande trilha Maia: A Rota Maia e o Corredor Biológico Mesoamericano. Este último é um projeto concebido no contexto do Sistema de Integração Centro-Americano (SICA) e mescla iniciativas de manejo de áreas protegidas com ações que promovem o desenvolvimento econômico das populações do entorno[x].
Palmilhadas a Costa Rica e a Transpanama[xi], há que se mapear e costurar caminhos na Colômbia, pelo menos até Pasto, onde começa a Rede de Caminhos Incas que nos levará até o norte do Chile. A partir daí por uma combinação de trilhas que aproveite os projetos Sendero de Chile e Huella Andina, o trilheiro chegará aos mesmos Dentes de Navarino da Trilha Atlântica.
Apoiados nessas duas grandes trilhas mestras, é possível imaginar roteiros menores, mas igualmente instigantes e com sua própria importância integracionista, como é o caso do projeto, America Perimeter Trail que propõe uma volta inteira nos EUA[xii]. Nessa mesma rota de pensamento, porque não pensarmos em uma trilha circular da América Central e Caribe, ou uma Volta da América do Sul que, por hipótese, não necessitaria descer até a Patagônia e poderia ter por arco meridional o Caminho do Peabiru, ligando o litoral dos estados brasileiros do Paraná, Santa Catarina e São Paulo ao território das Missões entre Brasil, Argentina e Paraguai e, daí, conectar-se a Potosí, por meio da Red Boliviana de Senderos, onde se conectaria ao Qapac Ñan. Daí é só subir até o Equador, e atravessar o continente no sentido da foz do Amazonas, refazendo o trajeto de Francisco de Orellana onde, pela Trilha Oiapoque x Barra do Chuí é possível descer novamente em direção ao Peabiru, fechando o grande circuito sul-americano.
Parece ficção? Parece, mas todo grande projeto começa pequeno, ao redor de um grupo de gente que faz. Se pensarmos bem, o ser humano ir à lua também parecia ficção, telefones celulares eram ficção há meros 30 anos e o Sistema Americano de Trilhas e as E-Paths europeias também já foram apenas um sonho distante. Como exposto neste artigo, há iniciativas de trilhas de longo curso em várias partes das Américas, já existe conhecimento acumulado suficiente em todo o mundo e, a exemplo de Mercosul, SICA, Organização do Tratado de Cooperação Amazônica e Comunidade Andina, já existe uma arquitetura diplomática que fornece o espaço para Estados debaterem o tema com calma e serenidade.
Como todo projeto de longo prazo, este também não acontecerá do dia para a noite. Provavelmente vai tomar décadas para virar realidade. Nós, no Núcleo Américas da World Trails Network entendemos perfeitamente que este trabalho só apresentará frutos maduros quando as lideranças de hoje já estarão trilhando nos céus. Sabemos também, por outro lado, que um mundo mais justo precisa de mais integração, menos xenofobia, mais conectividade entre áreas protegidas e mais geração de emprego e renda no campo. Por fim, está claro para nós que, por mais que seja um projeto demorado, o tempo necessário para seu amadurecimento só começa a contar a partir do momento em que plantamos as primeiras sementes. Para que essas ideias germinem, convidamos toda a comunidade trilheira das Américas a se juntarem na preparação da terra, na aragem, na semeadura, na fertilização, na rega e no cuidar dos primeiros arbustos. Pés à obra.