Fim da tarde de cinco de junho de 1861. Enquanto tenta se manter de pé no passadiço do Prince of Wales, seu comandante, John McKinnon, perscruta o horizonte. Vinda do sul, uma frente fria se aproxima. Nuvens carregadas pintam o céu de cinza-escuro. Os ventos, cada vez mais úmidos, ganham força, o mar começa a ficar encrespado, as ondas se avolumam, caem as primeiras gotas de chuva, pesadas, gordas e geladas.
Ninguém dorme à noite. O choro apavorado de uma passageira e sua filha junta-se ao rebentar de pesados vagalhões de encontro ao casco do navio, fazendo uma sinfonia macabra. McKinon não deixa a ponte de comando. Reveza-se com o timoneiro, com o piloto e com o imediato na vã tentativa de cavalgar um mar cujos safanões de água e espuma jogam o barco para lá e para cá sem destino nem direção.
No porão, não demora para que a carga de vinho, azeite, cerâmica e tecidos se solte e comece a correr livremente dentro do navio, abalroando seguidamente a parte interna do casco. De repente, uma enorme onda varre o convés do Prince of Wales. Leva consigo três marinheiros, que imediatamente desaparecem no mar. Na ponte de comando, todos são jogados ao chão. A roda do leme fica sem timoneiro. Outra onda gira o navio, que perde o prumo e se desalinha. Não há tempo para recolocar a proa de frente para as vagas. A onda seguinte, com as proporções de um grande prédio, irrompe contra um dos lados da embarcação que emborca e se enche de água. No porão a carga se choca contra o casco e o perfura. Tripulantes e passageiros lutam desesperadamente para não morrerem afogados.
9 de junho de 1861. A borrasca passou. O sol nasceu avermelhado, colorindo os confins da praia do Albardão. Dois caboclos, de pés descalços, estão tocando uma boiada em direção ao Tahim para entregá-la aos tropeiros que a levarão ao distante mercado de Sorocaba. Primeiro avistam dois cadáveres na praia, depois aqui e ali algumas caixas e outros indícios do naufrágio. Finalmente, com o sol já alto, vêm o reflexo de seus raios brilhando contra uma estrutura metálica. Apertam o passo. Aos poucos divisam-se, encalhados, os destroços do Príncipe de Gales. Ignoram os corpos dos marinheiros mortos e se apropriam do que sobrou da carga. Alguns dias depois, quando as autoridades brasileiras encontram os restos do naufrágio, contam dez cadáveres apodrecendo na praia e verificam que a carga do navio havia sido saqueada.
Nos meses seguintes, o Governo inglês acusa o Brasil de negligência culposa ao ter permitido o “assassinato” dos náufragos e o roubo da propriedade de súditos britânicos, exigindo o pagamento de uma polpuda indenização. Diante da recusa de D. Pedro II em aceitar a exigência, navios da Armada britânica apreendem barcos e mercadorias na Baía de Guanabara. O Imperador então solicita uma arbitragem internacional sobre o tema mas, para evitar a escalada das tensões, decide depositar em cautela a indenização exigida por Londres. Ao final do processo, o Brasil é declarado inocente pelo árbitro, afinal o acidente ocorrera em local isolado, inóspito e escassamente povoado. Ainda assim, os ingleses se recusam a pedir desculpas ou a devolver a indenização previamente paga, o que resulta no rompimento das relações entre os dois países, só reatada anos depois, ao estourar a Guerra do Paraguai.
Embora provavelmente seja o naufrágio mais famoso desse trecho do litoral brasileiro, essa longa extensão de praia, sem água e sem porto seguro, sempre foi muito temida pelos navegantes. Desde a descoberta do Brasil foram catalogados 320 navios que afundaram nessa fatia da costa brasileira, mais de um por quilômetro.
Região da Rota dos Faróis também possui atrativos históricos. Foto: Pedro da Cunha e Menezes
Para evitar novos naufrágios, em 1909 o Governo brasileiro mandou erigir naquela faixa de praia o Farol do Albardão, que junto com outros faróis como o do Chuí, o da Barra e o de Sarita aumentou a segurança da navegação. São esses guardiães da segurança marítima que batizam o Caminho dos Faróis, Trilha de Longo Curso Regional que é também um dos Extremos da Trilha Nacional Oiapoque x Chuí.
Sob qualquer ângulo, o Caminho dos Faróis não é para os fracos. Não poderia haver melhor porta de entrada para quem quer completar a Oiapoque x Chuí de cabo a rabo. Sol forte, ausência de sombra, ventos cortantes, tempestades de areia, luminosidade intensa e noites geladas são um teste de força, resiliência e persistência. Sem essas qualidades não será possível ligar a pé os pontos extremos do litoral brasileiro. De fato, sem esses atributos o aspirante a trilheiro de longo curso não vai completar nem mesmo o Caminho dos Faróis.
A Oiapoque x Chuí, que na verdade pode ser tanto percorrida de norte a sul quanto de sul a norte e, por isso também pode ser Chuí x Oiapoque, tem seu início meridional na margem brasileira do estuário do Arroio Chuí. Ali, com as costas para o Uruguai, quem está prestes a iniciar a aventura pela maior trilha de longo curso do Brasil, vai ver apenas areia e mar. Oficialmente, são 240 km de praia contínua até a barra da Lagoa dos Patos, em Cassino, Município de Rio Grande. Como não bastasse ser um local bastante agreste e inóspito, a Praia do Cassino, como é conhecida, também se arroga o título de “Maior Praia do Mundo”.
A bem da verdade, ela é mesmo enorme, mas não chega a ser a maior de todas como alguns gaúchos gostam de acreditar. Em 2012, o geógrafo da Universidade Federal do Rio Grande Marcelo Vinicius de la Rocha Domingues publicou estudo que a colocava em 10º lugar. Ainda assim, é muita praia. De bicicleta é possível cobrir a distância em três ou quatro dias. Caminhando, há quem a percorra em oito jornadas de boa pernada, com estirões que têm em média 30 km. Para quem gosta de ir em ritmo mais lento, apreciando a paisagem e tomando alguns banhos de mar, não seria vergonha completar a façanha em 12 dias.
Posto isso, existem formas de completar a “maior praia do mundo” capazes de agradar a todos os gostos e atender a diferentes necessidades. Para os atletas, desde 2015 o casal de portugueses Paulo Garcia e Sandra Costa organiza a Ultramaratona Extremo Sul, uma das provas de praia mais duras do mundo. No outro extremo, para quem deseja palmilhar a areia com calma, apreciando a paisagem, ouvindo o canto dos pássaros, sem carregar peso, comendo refeições gostosas e dormindo confortavelmente, existe a opção de contratar serviços de apoio, tais como os oferecidos pela operadora Caminho dos Faróis.
Entre as duas opções, existe a possibilidade de avançar de forma independente. Nesse caso, contudo, é recomendável experiência prévia, pois o Caminho dos Faróis tem longos trechos desérticos, com resgate difícil, sem acesso a água, nem a locais onde se pode comprar víveres. É necessário carregar barraca, saco de dormir e suprimentos para, no mínimo, oito dias.
O litoral do Rio Grande do Sul abriga uma das maiores extensões de praia do mundo. Foto: Pedro da Cunha e Menezes
Quem começa a caminhar (ou a pedalar) no Chuí vai percorrer o trecho inicial da praia, vendo uma paisagem decorada por muitas torres de energia eólica até o balneário de Hermenegildo, onde é possível sentar à sombra, comprar uma coca-cola e voltar à civilização. Se for desistir, essa é a última opção razoável antes do farol Sarita, mais de cem quilômetros à frente.
Por outro lado, quem persistir vai ter acesso ao principal prazer proporcionado pelas trilhas de longo curso. Solitude, belas paisagens, noites estreladas e muita natureza bem preservada. Com efeito, desde 2008, a área de praia que começa 50 km ao sul do Albardão e termina no Farol, somada a um quadrilátero com extensão de 20 km para dentro do oceano, está na fila para virar Parque Nacional. O pleito é justificado. À medida que o farol vai se aproximando, os sinais de vida selvagem se multiplicam. São focas, tartarugas, pinguins, lobos marinhos e uma profusão interminável de conchas (que justificam o batismo de um trecho da caminhada como Praia dos Concheiros). A quantidade de cardumes no mar atrai variada avifauna, como maçaricos-de-papo-vermelho, maçaricos-brancos, petréis grandes, trinta-réis de diversas espécies, albatrozes, gaivotões e outras espécies.
Não por outra razão, a REDE BRASILEIRA DE TRILHAS escolheu, em 2017, trabalhar pela consolidação da Oiapoque x Chuí como a trilha mestra do Brasil, após uma reunião de coordenação no ICMBio entre suas Diretorias de Criação e Manejo e de Biodiversidade. Na ocasião o pessoal do órgão responsável por espécies migratórias explicou que a costa brasileira é a principal rota de migração de aves do Brasil. Nesse sentido, como a REDE BRASILEIRA DE TRILHAS tem entre seus objetivos o estabelecimento de conectores de paisagem ligando unidades de conservação e outras áreas núcleo, foi imediatamente decidido que uma trilha nacional seria implementada ao longo do corredor litorâneo. Poucos trechos da Oiapoque x Chuí têm um céu tão colorido por diferentes pássaros quanto o do litoral gaúcho. Aqui é possível ver aves que vêm dos extremos norte do continente, como o Canadá e os Estados Unidos, bem como da Terra do Fogo, na Argentina. Apesar da ausência quase total de infraestrutura para visitação, tanta passarinhada atrai muitos observadores de pássaros do Brasil e do exterior. Vamos voltar a esse tema mais à frente em nossa jornada pela Trilha Oiapoque x Chuí.
Seguimos a pernada, alternando trechos junto ao mar, com passadas às margens da Lagoa das Mangueiras. A lagoa é um gigante de 123 km de extensão e 800 km², que está paralela ao oceano. Embora seja mais difícil caminhar junto às suas águas do que na praia, o variar de paisagens e de pisos torna a empreitada mais interessante. Cinquenta quilômetros depois do Albardão, chegamos à Estação Ecológica do Taim.
Avifauna na Estação Ecológica Taim. Foto: Thierry Rios
Criada em 1986, com 10.938 hectares e posteriormente ampliada para 32.806 hectares, a ESEC Taim é formada por banhados, praias, lagoas, campos, dunas e pântanos, abrigando muitos mamíferos e mais de 250 espécies de aves. Visitei a unidade de conservação em 2017, em companhia de Nelson Brugger, presidente da Federação Gaúcha de Montanhismo, entidade envolvida com a criação da Rede Brasileira de Trilhas desde sua concepção. Na época vistoriávamos o traçado do Caminho dos Faróis com vistas a apoiar a expedição de Edson Sorrentino desde o Chuí até o Oiapoque, que posteriormente foi interrompida por motivo de lesões musculares.
Encontramos uma área protegida fabulosamente linda. Não só os pássaros, mas também emas, capivaras, teiús, árvores frondosas, bromélias e flores de cores vivas nos cativaram. Caio Eichenberger, que na época chefiava a unidade, nos mostrou orgulhoso o pequeno centro de visitantes que montou para atender as centenas de turistas interessados em conhecer mais sobre a natureza do Taim. Nossa conversa com ele suscitou o questionamento: a ESEC Taim está ou não está aberta à visitação?
Segundo a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, é proibida a visitação pública, nas Estações Ecológicas, exceto quando com objetivo educacional, de acordo com o que dispuser o Plano de Manejo da unidade ou regulamento específico. Por outro lado, no diploma legal não está definido claramente o significado do termo “objetivo educacional”. Muito embora, no Brasil, a educação ambiental ainda seja vista como uma disciplina muito afeta à sala de aula ou a visitas supervisionadas, há conservacionistas defendendo a necessidade de proporcionar educação ambiental por meio do contato direto com áreas naturais. Em uma era em que a síndrome do déficit de natureza começa a ser reconhecida como uma patologia, pesquisadores de vários países têm chegado à conclusão que a forma mais eficiente de educação ambiental é o incentivo a atividades em contato com o ambiente natural. Em seu artigo “Outdoor Activities as a Source of Environmental responsibilities” (Atividades ao Ar Livre como Fonte de Responsabilidades Ambientais) os pesquisadores da universidade finlandesa da Lapônia Irmeli Palmberg e Jari Kuru demonstram que atividades ao ar livre, como trilhas, são poderosas ferramentas que moldam a atitude das pessoas em sua relação com o meio ambiente. Em outro continente, em seu livro “Environmental Education Through Hiking: A Qualitative Investigation” (Educação Ambiental Trilhando: uma Investigação Qualitativa), a professora sul-africana, Gherda Ferreira, chega a conclusões semelhantes.
É perfeitamente possível percorrer o Caminho dos Faróis e implementar a Trilha Oiapoque x Chuí sem visitar a ESEC Taim, apenas margeando seus limites. Considerando, contudo, a necessidade imperiosa de se reduzir a fragmentação das áreas protegidas e o objetivo legal da Rede Brasileira de Trilhas de criar conectores de paisagem entre áreas núcleo, fica a dúvida de qual é a melhor alternativa para a preservação do meio ambiente; se proporcionar uma passagem ordenada do Caminho dos Faróis pela ESEC, com o objetivo manifesto de educar os usuários quanto à sua importância para a preservação da natureza e a necessidade de manter ligações entre ela e outras áreas protegidas ou se é melhor mantê-la fechada a essa modalidade de visitação.
Foto: Operadora Caminho dos Faróis/Divulgação
Com essa dúvida na mente, deixamos o Taim para trás. Em breve passamos pelo farol Sarita e em seguida passamos pelos restos do Altair, encalhado em 1976 a 21 km do nosso destino. A partir daí, aos poucos, a natureza roots começa a se misturar com os sinais de civilização que vão ficando cada vez mais frequentes. Leões marinhos tomam sol lado a lado com o magrão de camisa do Grêmio e sua companheira com uma cuia de mate fumegante na mão. Não tarda para que casas de veraneio dominem a paisagem de um lado, enquanto, do outro, as revoadas de gaivota sobre o mar mantém o tom de natureza selvagem que nos acompanhou até aqui.
Ao fim, chegamos ao Balneário de Cassino e à Barra da Lagoa dos Patos. É hora de descansar os pés e saborear um merecido churrasco regado a cerveja gelada.
Há quem reclame que o Caminho dos Faróis é monótono. Luciana Nogueira, voluntária da Trilha Transcarioca, palmilhou do Cassino ao Chuí em 2017: “Foram horas e horas caminhando sem subidas ou descidas, sem curvas, sem alterações de paisagem. O vento salgado no rosto, o marulhar repetitivo das ondas e o ritmo constante das passadas e das batidas do coração são a marca dessa pernada. Monótono? Não creio que essa é a melhor definição. Diria que a Travessia da maior praia do Brasil é uma grande viagem espiritual, introspectiva. Uma bela oportunidade para conversar consigo mesmo, recapitular os bons momentos da vida, fazer uma auto-crítica desapaixonada, organizar os pensamentos e as paixões”.