Democratizar e universalizar o acesso de brasileiros ao ambiente natural pode ser,
mais do que um imperativo moral, a nossa tábua de salvação
Honro os que me precedem e honro os que provocaram o que concebo ser um inesperado, mas muito necessário, milagre brasileiro: o surgimento da Rede Brasileira de Trilhas. O primeiro Congresso Brasileiro de Trilhas, realizado entre os dias 25 a 29 de maio de 2022 em Goiânia (GO) é, senão a primeira, uma das mais relevantes encarnações dessa substancial comunidade ligada ao, até então, no Brasil, muito tímido universo das trilhas.
Pensadores, idealizadores, construtores, mantenedores, gestores de trilhas, somos, agora, alguns vários bocados de entusiastas. Infimamente menos do que seremos em breve futuro, mas já bem mais numerosos do que éramos vinte anos atrás.
Concebo, com coração e mente sinceros, que estamos envolvidos em uma revolução de significados múltiplos, de imponderáveis frutos e de imprevisível poder. A afirmação antes de exagerada é entusiasmada, sustentada na crença de que as trilhas representam a melhor chance que temos para refrear a catástrofe ambiental anunciada e já experimentada por nós, brasileiros.
Olhe para cima
A despeito de importantes avanços civilizatórios, inegáveis fatos demonstram que na relação com a dimensão natural a humanidade insiste na condição de estarmos imersos em lodo, nadando com afinco a livres braçadas. E não parece plausível que a saída desse oceano de lama se dará por atitudes feitas, apenas, a partir de nossas telas eletrônicas. Antes, esperanças revolucionárias apontam para ações sociais orgânicas, analógicas, mais encadeadas ao mundo concreto das relações interpessoais do que ao novo espaço comercial das redes sociais. Mais substanciado pelo pisar no chão do que no navegar virtual.
A urgência dessa temática – e infelizmente não é a única, apenas a que está sob o foco desse escrito – pede um engajamento até então inédito em nosso país. Apelando para uma lógica simplória e clichê, não lutamos com verdadeira gana em defesa do que não amamos. Não amamos o que não conhecemos e para conhecermos precisamos nos relacionar com o objeto a ser defendido.
Imagine uma hipotética pesquisa de opinião pública que perguntasse aos brasileiros “você acha importante conservar a Natureza?”. Mesmo no atual sombrio cenário apostaria que a quase totalidade dos entrevistados se diriam simpatizantes pró Natureza. Apesar disso, um número insuficiente de brasileiros sairia às ruas em algum protesto cuja motivação fosse ambiental.
Nos anos recentes, os dois trágicos episódios mineiros de Mariana e Brumadinho deveriam ser comovedores de massas indignadas ocupando ruas, furiosas pela mecânica perversa que permite a coexistência de tais riscos absurdos. Não me recordo, contudo, de nada tão barulhento em escala nacional fora das telas dos celulares.
Seguindo o mesmíssimo raciocínio, não é realista que brasileiros – em escala acima do risível – quando prestes a escolher seus representantes, futuros tomadores de decisões ou fazedores de leis, avaliem o quantum de preocupação ambientalista seu candidato a líder representa. Aceitamos como natural essa postura, afinal sub-existimos sob o condicionamento estrutural que nos relega, nos impõe à danação perpétua que nos aprisiona em um estágio de nação miserável. Sob as botas da desigualdade não haverá espaço para se respirar além das necessidades mais elementares de subsistência: comida, saúde, educação e segurança, as eternas e únicas pautas nacionais, mesmo que sabedores da óbvia verdade: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
Abraço de mãe
Criaturas da Natureza que somos, embora nos últimos séculos apartados do ambiente natural, empenhados – e bem sucedidos – em nos transformarmos em pessoas de granja, testemunhamos um transtorno pandêmico que nos acomete a quase todos, cujos sintomas são inúmeros e diversos, desde disfunções hormonais aos tormentos psíquicos modernos. Sintomas que são, apenas denotam um problema anterior, uma causa mais profunda: a saudade crônica e avassaladora da nossa relação maternal arquetípica, a falta do colo da Mãe Terra. Não por acaso, em diversas tradições, a parte sobre-humana dessa relação é femininamente denominada: Pachamama, Tiamet, Ishtar, Inanna, Astarte, Ñuque Mapu, Ixchel, Coaylicue, Nune, Maka Ina, Kokyang Wuthi, Gaya, Grande Mãe.
Ao contrário de órfãos, felizmente, essa saudade da Mãe tem óbvia e simples solução. Ela está bem ao lado, muito perto, esperando nossa visita.
Panaceia
Estamos, pois, acossados por duas forças adversas, maléficas. Por um lado há a grande aflição planetária, a crise ambiental mundial. Para que tenhamos efetivas políticas públicas dedicadas à questão ambiental é preciso que esse tema seja uma pauta relevante para os tomadores de decisão e legisladores. Só será importante aos líderes, que tão somente espelham os anseios da sociedade, se for um assunto central para a comunidade. Será do apreço da sociedade se esta for afetada pelo tema e o afeto pede alguma forma mais próxima de relação.
É preciso, portanto, que a sociedade conheça a Natureza.
A outra força se manifesta naquele transtorno humano de proporções globais. A saudade da Mãe esquecida será remediada com a simples visita. Não será por isso que os banhos de floresta japoneses ganharam o mundo como políticas públicas de saúde? A crescente constatação científica de que visitas à Natureza têm significativo e positivo impacto na saúde me faz conceber que, sabedores disso, passaremos ao papel culposo se não proporcionarmos, enquanto política pública, as possibilidades efetivas para que a sociedade visite a Natureza, da mesma forma que é legitimamente condenável quando, por exemplo, existe vacinação disponível contra uma moléstia que acomete a sociedade e não fazê-lo.
É preciso, portanto, que as pessoas adentrem a Natureza.
E entre essas tensões titânicas, um ponto simples e efetivo, potencial panaceia.
O remédio comum, se ainda não está óbvio, é a visita aos ambientes naturais. É a reconexão humana com a Natureza, apesar dos grandiosos e dispendiosos esforços feitos por ancestrais, e ainda agora praticados em profusão, para nos apartarmos, humanos, de tudo que nos remetesse verdadeiramente às nossas origens naturais.
Há tempo para despertarmos. É possível a autoconsciência coletiva, percebermos onde estamos, olharmos em retrospectiva de onde viemos e adivinharmos para qual abismo estamos seguindo aceleradamente. Talvez por isso a primordial necessidade humana de reconectar, manifesta, por exemplo, no milenar yoga (do sânscrito yuj, cujo significado pode ser simplificado como ‘integrar’) ou na religião (cuja origem latina é controversa, mas em ambas as versões, ‘revisitar’ ou ‘religar’, o sentido nos serve).
A parte filho mais árdua da reconexão é levar as pessoas para o encontro, pois a magia do arrebatamento, a capacidade da Natureza de embevecer o relapso é desmesurada. Resta-nos, assim, apenas dar o empurrãozinho necessário. Ela saberá encantar o visitante, desde que não atrapalhemos seu trabalho.
Considerando que, em sua imensa maioria, essas visitas são possibilitadas por trilhas, fachadas trilhas, muito mais, para todos os brasileiros.
O milagre materializado na Rede Brasileira de Trilhas também se afigura como chave auspiciosa, capaz de destrancar os cadeados que nos aprisionaram nessas aflições.